As senhoras já não se arranjam para ir ao ballet

Eram 19.30, estávamos em casa e tínhamos duas hipóteses: ou jantávamos ou arranjávamo-nos. Na verdade, a questão nem se pôs. "Comemos qualquer coisa pelo caminho". No pouco tempo que nos restava, vestimos vestidos pretos, pusemos pérolas, saltos e eyeliner Hepburniano. Estava marcado para as 21h a Bela Adormecida, pela Companhia Nacional de Bailado, no Teatro Camões. Eu e as minhas maridas fomos ao ballet.
Ao chegar, deparámo-nos com um cenário estranho. Fora alguns homens de fato e umas poucas mulheres de salto, a maioria do público parecia ter ido diretamente do trabalho (e um trabalho muito descontraído) para ali. Jeans, ténis, pantufas (peço desculpa, mas não consigo chamar-lhes botas, aquilo é para andar em casa) era o que mais se via. Reparámos que éramos as pessoas mais bem vestidas do auditório por exclusão de partes. Uma das maridas contou que, em Nova Iorque, as senhoras vestiam vestido comprido e as meninas vestidinhos de veludo, tal como faz sentido no nosso imaginário queirosiano. Pensámos: se as pessoas não se vestem bem para vir ao ballet, vestem-se bem para quê?


Perdoem-me os amantes de outros tipos de dança, mas o ballet clássico é a dança primeira. Não é só a base para tantos outros géneros; é o género mais completo que há. Inclui um concerto de música clássica, um desfile de figurinos, a criação de ambientes com cenários e luz, e, acima de tudo, o contar de uma história. E, diz-me o coração, é a arte do movimento mais bonita de todas.
Não é a mais bonita só pelas histórias de encantar, que têm sempre um tom de sonho, cheias de princesas, reis, bruxas e fadas, todos de roupa, cabelo e maquilhagem irrepreensíveis. É também, e principalmente, porque aquelas princesas, leves como penas, e aqueles príncipes fortes e valentes, sempre sorridentes, trabalham 8 horas por dia, todos os dias. O seu trabalho sente-se em cada músculo e o objetivo é simples, embora quase inalcançável: controlar totalmente o corpo. Fazê-lo obedecer às ordens do cérebro, com o movimento certo na batida exata, mesmo que doa muito (e dói muito). Sempre como se fosse tudo muito fácil.
Ninguém é bailarino clássico por acaso. Ninguém é bailarino clássico nas horas vagas. Um bailarino de danças de salão pode tornar-se profissional com aquelas horas de prática ao fim do dia. Um bailarino clássico só se torna profissional dedicando-se inteiramente à dança, todos os dias, muitas horas por dia. De corpo e alma - literalmente.

O ballet é uma arte maior que merece muito respeito. Todo aquele sonho, aquele conto de fadas em que tudo parece leve e simples, exige um esforço inimaginável. Mas no fundo, e como a Companhia Nacional mostrou com a chuva de confetis cor de prata finais, um bailado é uma festa que celebra a arte de pôr o corpo a fazer coisas bonitas ao som de música inspiradora. E, caros portugueses, quando alguém passa meses a preparar uma festa para nós, o mínimo que podemos fazer é aparecer bem vestidos.

Metro de Lisboa, Linha Verde, Meia-noite

Uma mãe e uma filha estrangeiras que olham atentamente o esquema das linhas do metro, certamente a caminho do hotel.
Um homem jovem, com óculos enormes de aros de metal, que deixam a dúvida se ele será um prevertido com uma câmara escondida na janela de casa ou apenas um hipster com mau gosto.
Um homem com um olho deformado e um grave caso de psoríase e falta de higiene, que grunhe resmungos dos quais só se percebe a palavra "merda".
Um jovem muito gordo de aspeto indiano que cheira, de facto, a caril.
Um homem velho e um homem novo, ambos de farda suja, que fazem comentários em alta voz como "ela é uma porca" e "ele é parvo" e "mas também, coitado, quem é que pega naquilo?".

Sempre gostava de saber onde se escondem estas pessoas durante o dia.

Por que a ficção é mais verdadeira que a realidade




Recado a todos os intelectualóides-conceptualistas-chatoscomócaraças que desprezam a evolução tecnológica dos filmes: o cinema nasceu como técnica. Ainda bem que houve gente inconformada e pouco conservadora (ao contrário dos pseudo-coisos) que achou que se podia fazer mais que tirar fotografias. O que os Lumiére inventaram foi uma tecnologia e não uma arte. Isso só veio depois, quando se percebeu que se podia pôr as máquinas ao serviço da mais bonita e democrática arte do mundo, que é contar histórias.

George Mélies achou que não havia razão nenhuma para esta arte ter limites. Como nos sonhos. Quando dormimos, adormecemos também todas as limitações impostas por nós ou pelos nossos pais ou pela sociedade em geral. Quando sonhamos somos absolutamente livres. Ali ninguém manda. E o Mélies achou que podia fazer uma coisa muito simples: filmar os seus sonhos. Ouviu a imaginação e inventou lagostas dançantes, esqueletos saltitões e uma lua com um foguetão no olho. Foi ele que inventou a fantasia no cinema. Ele abriu caminho à ficção científica, ao terror, à Disney, ao Scorsese e a todas as pessoas que acreditam que a criatividade é o que nos faz andar para a frente, é o que nos faz criar soluções para os problemas, é o que nos faz inventar máquinas mágicas, é o que nos faz não parar de contar histórias. O cinema, tal como a literatura, não vai morrer porque, por muito que às vezes tentemos, a imaginação humana é imortal, incontável e incontrolável.

"I'd imagine the whole world was one big machine. Machines never come with any extra parts, you know. They always come with the exact amount they need. So I figured if the entire world was one big machine, I couldn't be an extra part. I had to be there for some reason. And that means you have to be here for some reason too." Hugo Cabret

A razão de exitir de George Mélies foi simplesmente sonhar e assim fazer a arte mais genuína que é possível criar. Talvez devesse ser esse o dever de cada um de nós, enquanto peças fundamentais na máquina que é o mundo. Deixarmo-nos de tretas e sonhar e viver os nossos sonhos. Porque, curiosamente, sereias, aventureiros, lagostas com pernas, luas com rosto são mais reais do que aquilo que achamos que é a realidade. Sonhos vêm das profundezas da nossa cabeça e é aí, dentro de uma caixinha que quase nunca nos atrevemos a abrir, que mora a verdade.

Esta casa

é completamente aleatória. O que é como quem diz, isto não é um blog de viagens nem de uma arte qualquer, não é um blog de fotografias nem das roupinhas que eu visto. É um blog das coisas que eu penso. Provavelmente não interessará a muita gente (até porque isto dos blogs já nem se usa, que as letras são muitas e o tempo é pouco), mas na verdade isso pouco importa.
É que esta crise chegou-me à cabeça e eu acho que desaprendi a pensar e, consequentemente, desaprendi a escrever. O que me chateia como o raio, porque, apesar dos meus olhinhos bonitos e da minha obsessão por maquilhagem, o que me diz o cérebro ainda é o que vale mais. Para mim, para mim...
Quero pôr a escrita em forma, olear o pensamento e dizê-lo. Mas, no fundo, o que aqui se passará de facto é psicoterapia de trazer por casa.
O nome do blog é cá por coisas.